Gênesis


No princípio só havia ignorância, nada era conhecido e relações não se formavam, os seres viviam em equidade em sua ingenuidade, homens viviam por seus instintos e mais do que nunca, morriam por eles. Mas em certo momento, como que por chance, por um raro acidente, o homem descobriu o tempo, distinguiu o ontem do hoje e encontrou a promessa do amanhã, eis que surgiram os números naturais, ainda tímidos, amedrontados, eles tinham um único sentido em seu princípio, ordenar as coisas, mas que ferramenta poderosa isso se tornou. Engraçado que assim  como estes números, estes seres tinham um começo para o seu sentido, seu primeiro dia, e a frente deles, o infinito. Mas não tardou para que com a concepção da forma, viesse também a ideia de similares, de associar coisas, soma-las, agrupa-las. O homem passou a contar, sua capacidade inicial limitada, ainda da ordenação lhe permitiu que grupos planejassem e priorizassem, a sociedade humana nasceu, ganhou forma e passou a crescer. Os humanos criaram com sua noção de grupos, a linguagem, a forma e o conceito de valor. Seus números eram simples como sua concepção de mundo, símbolos rudimentares, e pouco práticos mas completos na compreensão limitada desses jovens seres. Estes símbolos representavam a ordem e quantidade das coisas e poderiam ser combinados para compor um número maior.


Com a recém conquistada capacidade e conhecimento do amanhã os homens começaram a guardar parte de suas coisas, a formar estoques, mas descobriram após inúmeras recontagens feitas para gerenciar o estoque uma nova ferramenta, uma forma de voltar e de remover. Mas assim como toda boa ferramenta, essa nova descoberta quebrou os números e ao olhar muito para o passado, eles encontraram o marco zero. A morte, a carência, a miséria e a dívida foram o preço a se pagar pela sede com que beberam do conhecimento, mas que doce conhecimento, eles descobriram os números inteiros, e agora o passado, assim como o futuro, era infinito. A sociedade humana criou assim o comércio e o dinheiro, mas criou também a oposição e a guerra. Sua representação de números tornou-se um grande obstáculo, mas eles conviveram com isso, criaram um símbolo para representar a ausência e um para a oposição, conceitos novos para eles.



A humanidade viveu embebida em suas novas descobertas, na promessa eterna do futuro e no conhecimento incalculável do passado, até que uma noção joga tudo para o ar novamente, uma noção que começou tímida, estendendo a noção de grupos, ou associações, e percebendo que grupos poderiam interagir entre si e que grupos poderiam ser formados de grupos, assim surgiu a multiplicação. A febre da descoberta foi contagiante, logo descobriram que poderiam comutar os grupos e obteriam o mesmo resultado, mas mais importante, descobriram que grupos de números poderiam se relacionar, e mesmo que no começo estes grupos eram limitados em seu tamanho, com suas funções mapeando de um grupo para o outro, eles logo se tornaram espaços, a relação de dois grupos ilimitados em seu tamanho, a humanidade conquistou enfim o espaço, as formas, as possibilidades e que estas, em cada momento do tempo são infinitas. Nada parecia fora do alcance da sociedade, as ciências nasceram e esmiuçaram a realidade, passaram a operar com a incerteza, em sua pujante e crescente economia domesticou-se o risco e bancos nasceram para com isso domesticar o futuro. A representação dos números se transformou, os homens abandonaram seu antigo sistema e passaram para um novo sistema, um sistema de bases, usando o novo conceito da multiplicação, agora a representação de números tornava-se facilitada, uma base com dez números tornou-se convenção entre eles, mas de forma alguma uma imposição, muitas outras bases começaram a ser usadas nas representações também.


Como que por instinto, algo que um reflexo residual da experiência que sucedeu de sua primeira descoberta, a humanidade entrou em um terrível conflito, os grupos que se formaram e prosperavam fraturaram, os acúmulos e riquezas destes foram saqueados e desta fratura novos grupos surgiam. Divididos por seu egoísmo e arrogância eles novamente quebraram sua realidade, segregaram-se e no grande embate confrontaram seus limites. A descoberta trouxe consigo um novo grupo de números, os números racionais e consolidou o domínio sobre as formas, sobre a imagem. O tempo, aquele descoberto anos atrás, e que se tornou infinito em seu futuro, infinito em seu passado, e em um espaço de infinitas possibilidades, também possui agora entre dois momentos distintos, uma infinidade de momentos. Mas onde existe decadência, existe também fartura, e mesmo que imerso na dor do confronto, agora os homens tinham à sua disposição a justiça, o equilíbrio. A simbologia dos números começou explicitando a relação entre eles, e surgiram as frações, mas a convenção de base dez universalmente utilizada permitiu a eles uma nova representação que não explicita a relação direta, mas a tradução desta para um divisor comum, o número dez, eis que surge a representação decimal.



A humanidade passou a assumir um ritmo que se assemelhava as suas grandes descobertas, inicialmente, subiram degrau a degrau, até que passaram a subir de dois em dois, mas estavam fadados às estrelas e agora cada passo na escada é com um degrau a mais do que o passo anterior. Os homens encontraram a exponenciação ao deparar com seu próprio crescimento, ao perceber o crescimento ao seu redor, e ela trouxe consigo um novo conjunto de formas para o que antes era rústico, rígido e regular, a exponenciação deu à humanidade as curvas. O tempo, tão precioso e tão recentemente descoberto, parecia dominado para os humanos, mesmo em sua infinidade, mas agora ao olhar atentamente com sua nova descoberta eles se depararam com um incrível fenômeno, que ao olhar para o tempo, é que o momento quando olhado de perto, é em sua íntima natureza como o tempo, e que as partes que o compõe também o são, os homens encontraram a recursividade, os fractais. Agora estavam municiados com um poderoso arsenal, as ciências avançaram na exploração da realidade, trouxeram consigo um forte instrumento para exercer controle sobre o meio natural, vivo, dinâmico, encontraram na subdivisão do espaço, um espaço inteiramente novo.



Adiante na tão misteriosa jornada, a humanidade se deparou com sua terceira crise, uma crise devastadora, uma crise existencial. Em sua insistente curiosidade, com a recente descoberta da recursividade, estes seres começaram a dedicar seu tempo a questionar toda a existência, a buscar a raiz de tudo a de tentar de alguma forma encontrar a origem, o princípio. Foi assim que a crise se instalou, enquanto ainda bebendo de sua recente descoberta da exponenciação e da recursividade, eles descobriram agora um conjunto especial de números, os números irracionais. Números estranhos, completamente alheios aos números conhecidos, números que são em si, perguntas sem resposta e que dessa forma carregam consigo o mistério que os permite representar fenômenos maiores que eles, números que carregam a recursividade da natureza dentro de si. Foi este olhar profundo e completo sobre a natureza sua e das coisas ao seu redor que trouxe a crise ao homem, algo estava faltando, sua compreensão do tempo lhe permitia olhar para o infinito futuro, o infinito passado, a natureza recursiva do momento em suas infinitas possibilidades, e com seus misteriosos números, as infinitas impossibilidades. O homem havia dominado toda a realidade, seus números representavam tudo que existia, todos os fenômenos, seus números se tornaram Reais. Mas uma pergunta ainda estava sem resposta, a pergunta mais íntima e que povoou seu imaginário por tanto tempo, desde o princípio talvez, o grande mistério do Eu.




Todo progresso da humanidade foi construída em cima da natureza observável, daquilo que conseguia medir, tocar e reconhecer como real, seus números eram a representação disso, por mais misteriosos ou recursivos que fossem, ainda sim eram medidos e observáveis. Porém, ao tocar no seu íntimo revelou uma natureza oculta, algo que não poderia ser medido, os seres humanos encontraram finalmente seu subjetivo, uma força capaz de guiá-los de um momento ao próximo sem que tenha sua atuação observável no mundo físico, mas claramente uma parte deles mesmos. Encontraram os números complexos, números que tem uma parte real e uma imaginária, esta parte habitando um mundo seu, mas que ainda influencia naquilo que é observável no mundo real. Quão magnífico foi encontrar essa nova dimensão, quase como ouvir pela primeira vez o coração de um filho, de dar cores à alguém que não as via, o grande espaço de possibilidades e impossibilidades infinitas tem agora um companheiro de jornada, o Ying encontrou seu Yang, e a natureza física do homem se harmonizou com sua natureza intelectual. O campo das possibilidades ainda está aberto aos homens com sua última descoberta, mas a união da recursividade natural e da natureza dual dos números eles conseguiram dominar os processos cíclicos, a comunicação atingiu novas dimensões e também a capacidade dos homens de calcular, o domínio de sua nova realidade dual também lhes ofereceu novas perspectivas para as interações humanas. Infelizmente, ao avançar demais na sua noção dos fundamentos de sua realidade, eles perderam sua primeira conquista, seus novos números não permitiam a eles sequenciar coisas, eles haviam perdido a capacidade de organizar, seu novo recém descoberto parceiro de viagem esmigalhou a natureza do tempo, passado, presente e futuro agora não faziam mais sentido tudo passou a ser relativo, tudo dependia agora de um referencial.



Impossível, não existe nada mais, qual segredo eu guardo? Como esta história ainda pode ter continuação? Seria o homem ternário ao invés de dual, qual é o próximo mistério, a parte faltante? Infelizmente, não se sabe, entro aqui no reino da especulação, no reino do tão intangível que a abstração pode ser pitoresca e ingênua, mas vou registrá-la. Apenas dois dias restam para que a criação, a Gênese, tenha atinja seu ápice, sua epifania, quais são eles?

Os homens conquistaram os céus, o espaço, as estrelas, desvendaram o mistério que os prendia no chão, construíram complexos sistemas de organização e tinham disponíveis ferramentas incríveis de transformação. Descobriram inclusive a relatividade do tempo, a dependência deste de um referencial. Mas se compreender em isolamento criou um forte individualismo, e os seres voltaram sua atenção das estrelas e do todo novamente para o micro, para aquilo que é fundamental, e na estranha natureza fundamental da matéria encontraram sua nova descoberta, os Quaternions. Estes estranhos números, assim como os números complexos, possuem uma parte real, mas escondem não apenas uma parte imaginária, mas três partes adicionais. O reflexo de tão estranho número nas relações entre os homens se deu na compreensão de duas partes desconhecidas de sua natureza, agora sua natureza física e seu eu-subjetivo ganharam a companhia do seu eu-social e do seu eu-universal. O Eu-social são ideias que permeiam os vários subjetivos, são conceitos que relacionam, navegam e são transformados por estes subjetivos. Eu-universal é a conexão do subjetivo e de seus relacionamentos com ideias emergentes, com o subjetivo universal, são as regras universais de coesão, como a lógica, a evolução, a entropia e a própria matemática. Assim como a descoberta do subjetivo removeu dos homens sua primeira ferramenta, a ordenação, os quaternions e esta nova concepção do indivíduo trouxe também sua limitação. A comutação se perdeu, a ordem com que grupos interagem afeta a interação, a ordem dos fatores altera o produto. Nesse novo espaço de existência os homens já não vivem mais como indivíduos, extrapolaram esta noção e agora, como uma colônia de formigas, respondem a algo que é maior do que eles próprios. Em suas explorações, quaternions permitiram aos homens trabalhar com as incertezas do mundo físico fundamental, de usar dessas estranhas interações misteriosas para calcular o que antes era incalculável.



Finalmente, o último degrau, o dia do descanso, o dia de usufruir da criação, de um serviço concluído. A humanidade encontrou os Octonions, sim, números que assim como seus antecessores apresentam sua parte real mas contém outras 7 partes. Mas aqui está a fronteira diante de nós, entendemos os Quaternions, e até temos compreensão dos Octonions, mas o que seriam essas quatro novas partes de nossas existências? Sabemos ao certo que outra noção fundamental se perde, Octonions não são associativos, não permitem uma recomposição na ordem com que as partes formam o todo, seria como desmontar um quebra-cabeça e descobrir que a ordem com que as peças são colocadas faz toda a diferença. Números complexos e Quaternions destruíram quase todo o tecido do que se conhecia por tempo, os primeiros removeram a ordenação, e no segundo caso a perda da comutação é como uma dependência oculta das possibilidades de um dado momento com todos os outros momentos no tempo, um entrelaçamento entre momentos. Octonions acabam com a última parte da noção de tempo, e uma que nos é demasiado preciosa, a noção da passagem do tempo, aquela dependência oculta revelada pelos Quaternions agora toma uma nova forma, agora não só os momentos são dependentes em algum nível de todos os outros, mas existe também uma força motora que nos move de um para o outro, existe agora uma seta do tempo. E aqui companheiros que eu deixo vocês, a matemática é esta companheira inseparável em nossa jornada de compreensão, a cada novo passo que demos em sua compreensão, mudanças incríveis transformaram nossa sociedade, destruindo o velho homem para dar espaço para um novo. Nessa jornada, descobrimos o tempo, e com ele o infinito, mas tamanha estatura, muito maior do que nós não nos assustou, abraçamos o infinito e o colocamos em novas experiências com o tempo a cada passo dado, e agora no final da jornada, colocamos um fim ao conceito que iniciou tudo, o fim da jornada se torna também a morte do tempo, do infinito.


Fontes das imagens (começando pelo topo):
[1] https://en.wikipedia.org/wiki/The_Creation_(Haydn)
[2] http://clubes.obmep.org.br/blog/sala-de-estudos-sistema-de-numeracao-romano/
[3] https://upload.wikimedia.org/wikipedia/en/7/74/PicassoGuernica.jpg
[4] http://americanfreepress.net/scope-of-feds-financial-swindle-is-appalling/banker/
[5] https://kristinakey.wordpress.com/2012/02/06/lady-justice/
[6] https://weheartit.com/entry/171208494
[7] https://www.youtube.com/watch?v=e2OiBTJ65Wo
[8] https://www.psychologytoday.com/us/blog/beyond-good-and-evil/201112/killing-ego-kill-evil
[9] https://www.francescaprofili.com/pages/the-balance-of-gaia
[10] https://weheartit.com/entry/98165222


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