We Don't Need No Education!


Esse vai ser um longo e, para o leitor mais atento, com uma multitude de estilos e formas de escrita. Eu escrevi isso ao longo de anos, voltava e adicionava mais um pouco sem mexer muito no restante, e aí o resultado é essa amálgama digna de um Dr. Frankenstein. Visto que esta é a possivelmente a parte mais recente deste texto, reforço que não modifiquei muito o que já estava escrito e mesmo que, provavelmente, esteja de acordo com o conteúdo, talvez escolheria uma outra forma de enquadrar minha posição, sem naturalizar termos tão carregados política e ideologicamente como mercado e consumidor, mas enfim, reflete o momento político que vivemos onde nosso sistema econômico e suas práticas se tornaram ponto comum. Sem mais delongas, segue o texto.

Não é de hoje que penso na questão da Educação, e aceito que não tenho a formação para uma discussão formal e informada sobre práticas e estudos da área, porém, penso que o Sistema de Ensino de um país não é "A Educação", é o veículo pelo qual educamos, e este está inserido em nossa economia, portanto é sujeito ao meu aval como consumidor (já dizia o ditado, "O consumidor tem sempre a razão"). Passei pelo Sistema de Ensino como um estudante e professor, e hoje contrato o mesmo como pai, e creio que isso me habilita a fazer críticas ao sistema, capaz de oferecer opiniões e sugestões válidas (não necessariamente corretas). E não é o fato do serviço ser provido por um veículo público ou privado, ou da importância na formação de caráter que ele tem, que me faz menos consumidor deste. É possível questionar se o aluno ou os pais são o consumidor, mas ainda assim está claro quais lados atuam como provedores do serviço e quais são os consumidores do mesmo. Alienar pessoas que não estudaram pedagogia do debate sobre Educação é um erro, tão grave quanto alienar pessoas do debate político por não serem filósofos, administradores públicos ou estudiosos do direito. Devemos incluir todos no debate, e usar o conhecimento dos especialistas como mediação deste, informando as partes dos fatos conhecidos, teorias e seus paralelos práticos e buscando encontrar uma agenda comum entre as partes envolvidas, pois como pretendo discutir, diferentes atores neste debate tem interesses distintos, e em muitos casos conflitantes.


Acima o artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos apresentado pelas Nações Unidas e aprovada pela sua Assembleia Geral em 1948. Nota-se, que assim como alimentação, lazer e cultura, todos temos direito à Educação e que esta deve ser gratuita ao menos em seus níveis mais fundamentais. Afirma que a educação básica deve ser mandatória, que profissionalização e capacitação técnica devem estar disponíveis e a educação superior deve ser igualmente acessível a todos tomando como base de acesso o mérito. No segundo parágrafo, reforça que a educação deve ser direcionada ao desenvolvimento pleno da personalidade humana e ao fortalecimento do respeito às demais liberdades fundamentais e os outros direitos humanos. Deve promover o entendimento, tolerância e o convívio entre povos e diferentes grupos e avançar as atividades das Nações Unidas na manutenção da paz. Finaliza em seu terceiro parágrafo ressaltando que os pais tem prioridade nas decisões sobre a educação de seus filhos. Acredito que apesar de seus quase 100 anos, o artigo é uma boa base fundadora para uma discussão crítica sobre os nossos sistemas educacionais.

Olhando o assunto nacionalmente, ou mesmo a nível de estados, temos a questão do investimento público aplicado à pasta, mas principalmente a direção dada pelos governos para "A Educação", vista sempre como uma questão estratégica e inerente à pasta econômica. Em 2016, o The Guardian publicou um artigo crítico ao que chama no título de "A Economia do Conhecimento", a noção de que devemos injetar mais investimentos na Educação de forma a capacitar e formar profissionais mais qualificados e se tornar mais competitivos no mercado global. O artigo traz uma narrativa interessante de como essa noção é aceita sem questionamentos, de forma ingênua, e carece de evidências concretas de que o investimento feito se paga. Uma estatística do artigo diz que a grande maioria dos empregos disponíveis não necessitavam de formação superior, e cerca de um quarto deles não exigia nem conhecimentos do ensino médio. O cerne na perspectiva apresentada é que à demanda deve ter primazia na equação, portanto simplesmente mover alunos passivamente do Fundamental para o Superior sem criar os espaços necessários na economia é um enorme desperdício de dinheiro, independente se a oferta é feita de forma pública ou privada, sendo que a última pode ser ainda pior, visto os impactos negativos do financiamento para o indivíduo, este que esta sendo vitimado e entrará em um mercado de trabalho excessivamente qualificado e endividado. Para leitura adicional, aparentemente, o artigo do The Guardian usou esse livro como referência, Academically Adrift

A nível da relação individual com o sistema de ensino, vejo algumas vertentes de críticas que tomo como prioritárias: a transformação dos centros de formação intelectual em centros certificadores de profissionais, o descompasso entre ensino e prática, as métricas de avaliação e o atraso tecnológico (que também se apresenta na forma de aversão à qualquer mudança). Em cima de todas as críticas apresentadas, existe um grande debate sobre o papel do Estado e quanto deste papel deveria ser relegado à iniciativa privada. Não é o centro da minha discussão hoje, mas entendo como uma discussão fundamental, pois acaba direta e indiretamente impactando nas críticas apresentadas. Educação Privada, neste contexto, implica sujeição as regras do Mercado, e portanto, compartilhando do mesmo objetivo dos participantes desse, maximizar os lucros. Como em outros elementos sujeitos ao Mercado, Qualidade é observada pelo consumidor para selecionar o melhor entre os competidores, competição essa que força os competidores a maximizar sua eficiência, podendo produzir com menor custo serviços que satisfaçam seus consumidores, e este ganho de eficiência visa maximizar o lucro. Neste modelo o papel do Estado é de delinear o conteúdo (lembre do segundo parágrafo do artigo 26 onde afirma qual o papel que a Educação deve servir) e estabelecer regras e instrumentos de financiamento que permitam cumprir com outros direitos fundamentais (igualdade de acesso, gratuidade do ensino fundamental). Por fim, cabe apontar que no debate público-privado existe também a questão do endividamento dos estudantes, especialmente evidente nos EUA, mas provavelmente parte da realidade Brasileira também. Com o aumento da pressão por formações superiores, mesmo para posições sem tal necessidade, e com a redução nos investimentos públicos no setor, a demanda passa a ser atendida pela iniciativa privada e em um cenário onde grande parte da população tem sua renda comprometida, os custos são financiados já em nome do estudante que, em muitas vezes, não iniciou ainda sua carreira profissional e já iniciará essa jornada endividado.

Minha primeira crítica é a percepção minha da transformação dos centros de ensino, especialmente médio e superior, em centros certificadores. Com relação a causa raiz desta transformação, existe, ao meu ver, um desalinhamento entre as expectativas dos participantes no sistema de ensino, entre pais, alunos, educadores, gestores e Governos. Diferentes estratégias podem ser adotadas pelo Governo, dependendo de como é a relação deste com os interesses do povo que ele representa. Pode-se ter um governo "maléfico" cujo interesse é manter uma sociedade empobrecida de certas noções que podem levar à críticas ao governo e subsequente revolta. Um governo "benéfico" buscaria maximizar a intelectualidade de seu povo, servindo como direcionador para entender o que caracteriza esta intelectualidade e como buscá-la. Independente de seus interesses, Governos priorizam uniformidade, uma mensagem consistente e disciplinada e que apresentem ganhos para a população e para si (em diferentes proporções). Gestores tendem a maximizar a eficiência, reduzir custos e riscos e maximizar resultados que beneficiem a escola. Alunos querem independência de escolha e maximizar sua vocação, assim que esta é conhecida, buscando uma visão holística antes para serem capazes de encontrar seu espaço (ok, um pouco otimista da minha parte). Pais querem filhos bem sucedidos mas que operem dentro de sua visão de mundo, buscando inclusive na escolha de escola (quando existe a possibilidade) uma forma de garantir qual mensagem será passada. Educadores são trabalhadores, e raramente possuem uma agenda que não seja a de transmitir o conteúdo da melhor forma, sendo que muitos tem como objetivo a formação de alunos mais capazes do que eles próprios. O conflito de interesses estará sempre presente, porém, a negligência em se debater este conflito, em haver concessões, é que faz deste um conflito desbalanceado, onde os consumidores (pais e alunos) tem pouca voz comparado com os provedores e a Sociedade (na forma do Governo), e portanto tendem a ter sua voz suprimida resultando em alunos desinteressados, pais frustrados, e uma educação que não forma mas sim doutrina.

“One of the curious things about our educational system, I would note, is that the better trained you are in a discipline, the less used to dialectical method you're likely to be. In fact, young children are very dialectical; they see everything in motion, in contradictions and transformations. We have to put an immense effort into training kids out of being good dialecticians. Marx wants to recover the intuitive power of the dialectical method and put it to work in understanding how everything is in process, everything is in motion. He doesn't simply talk about labor; he talks about the labor process. Capital is not a thing, but rather a process that exists only in motion. When circulation stops, value disappears and the whole system comes tumbling down.”
David Harvey, A Companion to Marx's Capital

O texto acima extraído do livro "A Companion to Marx's Capital" de David Harvey, afirma que existe uma relação antagônica entre o treinamento rígido (e.g. uma aula expositiva) e o método dialético (o uso do questionamento, da contraposição e da investigação na busca das respostas), e que quanto mais as crianças são expostas ao treinamento rígido menos capazes de usar o método dialético elas serão. Isto é muito evidenciado no ensino de Matemática e outros campos da Ciência, onde estudantes são raramente provocados a encontrar as respostas, mas sim estas o são apresentadas sem um esforço dialético. Posteriormente, quando no ensino superior, a matemática passa a ser mais e mais abstrata e exigirá do aluno a capacidade de remover práticas rígidas (aplicação de fórmulas por exemplo) por intuição e abstração (como provar a validade de teoremas), e a dialética é muito mais focada no fortalecimento desse tipo de pensamento abstrato e no questionamento. Harvey então procede em afirmar que crianças são naturalmente dialéticas e que o sistema educacional as força no modelo rígido removendo assim este talento natural.
 

No âmbito do descompasso entre o ensino e a prática, ou seja, entre o conhecimento passado e como este conhecimento empoderará o estudante no seu uso. Não se trata de ignorar o papel da educação básica e formadora, trocando-a por uma profissionalizante, mas sim no reconhecimento das necessidades de uma sociedade e de seu povo em capacitar-se para os desafios reais. O provimento de um conteúdo diverso e de uma grade flexível permite exposição às escolhas futuras que um estudante terá que fazer ao decidir por uma carreira e na direção que esta tomará. Experiências práticas associadas ao processo de ensino, não como simples "aulas em laboratórios", mas como experiências desenhadas na forma de um micro-cosmo da experiência real. Um exemplo disso se dá na formação de assembleias estudantis que representam um micro-cosmo da organização civil fora do espaço estudantil. Desta forma, noções de convívio, voto e cidadania podem ser compreendidas em um universo simplificado (a escola) para depois serem expandidas para a experiência social completa. Por fim, vejo que existe uma recusa ao processo educacional de se mesclar com a atuação profissional, um estudante de engenharia vai passar por uma infinidade de conteúdos e matérias, ao longo de no mínimo 3 anos antes que possa estar qualificado para um Estágio na área. Muitos vão demorar ainda mais para ter exposição ao mercado de trabalho e aos usos práticos do conhecimento que está recebendo.

Na questão da avaliação do ensino, existem problemas externos à educação que acabam interferindo, sendo um deles a discussão sobre QI e Inteligência. Um campo propõe a existência de múltiplas formas de inteligência e portanto não é possível estabelecer uma métrica única, outro que o QI é a medida da inteligência de uma pessoa, e que outras formas de inteligência apresentada são influenciadas por este indicador. Testes internacionais de estudantes tendem a ter muito esta característica, a de normatizar o conhecimento de forma a poder medir a eficácia dos centros educacionais na formação das pessoas, mas para isso perde-se nuance, a avaliação é rígida e não dá abertura à aspectos importantes na formação mas difíceis de medir ou cuja "utilidade" não é do interesse daqueles que desenham estes testes. Do ponto de vista individual, a avaliação de estudantes é um processo arbitrário, muitas vezes mal executado e que não permite trabalhar bem com estudantes com dificuldades de aprendizado, sejam elas com diagnóstico médico ou não. O sistema estabelece já no  ambiente escolar a divisão esperada destes alunos uma vez que se tornam cidadãos, reforçando a estrutura de classes sociais que vivemos e as hierarquias, ditas meritocráticas, na grande maioria das corporações onde trabalhamos.Este vídeo, em inglês, apresenta a posição de um professor sobre o tema, com mais fontes e melhor enquadramento do problema.

O atraso tecnológico não é a simples incorporação de novas tecnologias no mesmo sistema, mas sim, entender onde houve ruptura nas práticas tradicionais e como ajustá-las para que a tecnologia produza resultados no aprendizado. Resultados estes que devem ser vistos sob a ótica revisada dos demais itens, ou seja, observando-se as múltiplas inteligências e novas métricas de avaliação, observando o contexto das práticas profissionais e as diferentes expectativas das partes interessadas. Portanto, substituir o conteúdo na lousa, por slides de PowerPoint ou vídeos e animações vão produzir poucos resultados, e podem até, potencialmente, comprometer o ensino. Não é mais possível ignorar a relação entre a Internet e o Ensino, milhares de horas de treinamento encontram-se prontamente disponíveis, instituições de ensino oferecem cursos à distância removendo qualquer barreira geográfica, inclusive cursos começam a ser oferecidos para uma larga população ao mesmo tempo (Massive Online Courses, os MOCs que chegam a contar com milhares de estudantes para um curso) e ainda assim permitem a posterior avaliação do aluno com diferentes tecnologias (múltipla escolha, revisão por pares, filtragens com inteligência artificial). As possibilidades de oferecer um ensino prático e visual também são incrivelmente ampliadas com o uso das tecnologias de produção audiovisual já amplamente difundidas e com a incorporação de técnicas de outras áreas do conhecimento como artes cênicas e música.

É importante esclarecer que esta é minha perspectiva sobre problemas no sistema educacional que observo tendo passado por diferentes funções, aluno, professor e pai. Nunca fui administrador de escola, administrador público ou pesquisador na área, e portanto minha opinião reflete mais a ótica do consumidor, e em maneira alguma visa definir prioridades ou apresentar soluções definitivas, mas apresentar uma crítica aos problemas que considero importantes e exibir quando possível as alternativas que acho cabíveis. De todas as formas que podemos usar para criticar e combater o atual sistema de ensino, acho que a pior é a prática do ensino familiar, não as instâncias específicas, pois acho que muitos que foram educados desta forma são pessoas bem educadas e bons profissionais, mas como uma prática estimulada ou programa de governo. Como outros sistemas distribuídos, é extremamente difícil exercer qualquer controle sobre este tipo de ensino, criando uma sociedade fraturada, além de atribuir demasiado peso à família e grupos familiares na formação da sociedade, algo que se assemelha a uma sociedade aristocrática. Esse tipo de prática também impacta outras formas pela qual a sociedade se organiza, pois combinada com a monogamia, implica que ao menos um dos pais deverá representar o educador, removendo a possibilidade deste de trabalhar ou impondo uma carga de trabalho demasiadamente alta para o mesmo. No Brasil, assim como outros lugares do mundo, esta tarefa quase sempre recai às mulheres, combinando este com outros obstáculos à sua inserção no mercado de trabalho, como a gravidez e amamentação (não me entendam mal, não é crítica à mulher, é uma constatação do atual cenário trabalhista no Brasil e no desbalanceio dos incentivos). Por fim, a instituição do ensino domiciliar, especialmente no Brasil, visa responder à pressão de grupos cuja principal característica é a doutrinação e alienação dos estudantes, ao contrário do princípio norteante da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o de promover o desenvolvimento pleno do indivíduo e fortalecer o respeito aos direitos fundamentais de todos nós.

Outros pontos no debate sobre ensino ser público, privado, misto ou alguma variante, que não entrarei em detalhes, especialmente após a pandemia de COVID que se tornaram extremamente relevantes e deveriam nos informar como eleitores sobre como queremos a condução da educação de nossas crianças:

- O impacto da pandemia de COVID em 2020, e o impacto na educação pública.
https://jacobinmag.com/2020/5/public-education-schools-covid-coronavirus-charter-teachers

- Charter Schools e a falha do modelo neoliberal de educação
https://educationvotes.nea.org/2017/11/28/charter-school-experiment-failed-concludes-national-investigation/
https://www.salon.com/2019/12/12/why-the-federal-governments-billion-dollar-charter-school-program-is-a-bigger-disaster-than-we-thought_partner/
 

Comentários

Julio Raffaine disse…
Texto recebido pelo Telegram por Jones Manoel:

A educação não vai salvar o mundo.

Também não é libertadora

Também não garante igualdade de oportunidades

E muito menos vai tirar o país do atoleiro do subdesenvolvimento e da dependência

A educação é burguesa, racista, colonizada, opressiva e tecnicista, mas, ao mesmo tempo, é um campo de disputa aberto; uma das poucas áreas da divisão social do trabalho onde o explorado (professor) tem uma margem de manobra maior na execução do seu trabalho e, é claro, ainda tem papel central na formação das consciências e subjetividade das maiorias.

Nesse momento de ofensiva burguesa contra a educação, e especialmente nesse dia do professor, reafirmo o que digo todos os anos: precisamos de um projeto radical de defesa da educação pública, mas que caminhe muito além disso, pautando uma transformação total do nosso padrão de ensino, pesquisa e formação, buscando construir uma universidade e escola popular como parte de um projeto maior da Revolução Socialista no Brasil.

Hoje essa Revolução parece longe. Mas só lutando por ela, já hoje, é que conseguiremos construir um futuro de verdade e manter o pouco que temos já conquistado.

Feliz dia do professor!