Sarau, O Sindicato da Música


Posso estar sozinho nesta angústia mas, em plena era da hiper-conexão de pessoas, processos e produtos, não gosto da forma como não existe conexão nenhuma entre os inúmeros serviços de música disponíveis. Ilustrando meu problema de outra forma, você pode ter uma coleção de álbuns e playlists em um serviço como o Apple Music ou Spotify, ouve uma música muito legal no Pandora e não vê uma forma natural de incorporá-la as suas listas em outros serviços, o mesmo para Youtube Music ou Amazon Music e enfim, qualquer outro. Em algumas situações, como com o extinto serviço do Microsoft Groove e seu Music Pass, o usuário pode ter comprado músicas, deixado likes, comentários e elaborado listas que foram perdidas com o fim do serviço (eu obtive uma cópia legal das músicas compradas ao menos). Migrações são oferecidas mas são um processo complexo para o usuário sem experiência e em muitos casos com enorme esforço manual para importação. Tangencialmente a isto, existe a questão da privacidade e integração social, onde as plataformas coletam informações dos usuários sobre seus hábitos e usam estas informações para oferecer conteúdo mais alinhado com as preferências destes usuários e de seus círculos sociais, estas informações coletadas porém não são claras para o usuário que com receio de ter um serviço de pior qualidade tende a aceitar as condições impostas sem questionamento e assim como as outras informações mencionadas não são passíveis de serem oferecidas de forma integrada entre as diversas plataformas de distribuição do conteúdo.

Quem é leitor deste blog sabe que não resisto à possibilidade de deixar minha sugestão para uma alternativa e quase sempre esta minha sugestão exige mudanças fundamentais significativas pois enxerga que os atuais mecanismos existentes para a inovação não serão capazes de criar os cenários desejados sem que o fundamento do processo seja redefinido. Qual a solução que apresento? Sarau, o Sindicato da Música! A proposta é melhor compreendida se puder contar com estímulo governamental para que elementos terceiros ao núcleo da experiência musical não nos impeçam de maximizar a qualidade dessa experiência, e sim, lucro e propriedade são estes elementos, afinal representam mais nosso modo de produção atual do que algo inerente ao processo criativo envolvido na produção artística e cultural. Mas este estímulo não é necessário, ele permite acelerar e possivelmente garantir que a plataforma terá conteúdo que satisfaça seus usuários, e sem este estímulo, caberia à comunidade se organizar para conseguir incluir na plataforma artistas de grande renome e sem interesse inicial no modelo.

Sarau portanto seria a plataforma central onde todo o conteúdo é disponibilizado em múltiplos canais de distribuição, que principalmente diferenciam na qualidade com que a música é entregue. Serve de repositório central porém cujo acesso é distribuído e realizado por meio de múltiplos agentes. No campo da distribuição teríamos serviços como o Spotify e o Pandora, cuja função é oferecer aos usuários diferentes opções de acesso ao acervo do Sarau, estas diferenças no caso podem ser referentes à qualidade com que a música é oferecida, mas principalmente os serviços se diferenciariam pelas oportunidades de descoberta que eles oferecem, DJs e algoritmos podem ser utilizados para criarem seleções musicais com as músicas disponíveis, e este seria um dos elementos diferenciadores dos serviços de Distribuição. Do ponto de vista da produção, muito dependeria do apoio ou não do governo, ms considerando o cenário sem apoio inicialmente creio que uma avenida é mediante ao consórcio dos estúdios, gravadoras e rádios para criar um sistema de entrada comum, estes espaços teriam a governança do Sarau juntamente com os artistas, e seriam os principais responsáveis pelo custeio da infra-estrutura de armazenamento e distribuição inicial do conteúdo, tendo também uma parte relevante dessa responsabilidade com os artistas, que teriam diferentes níveis de cadastro junto ao Sarau, o que permite a este flexibilidade na escolha de cotas de armazenamento, qualidade com que materiais produzidos são armazenados e qual o alcance dessa produção. Dessa forma, a governança da plataforma é de controle do consórcio entre os agentes de produção com os artistas, e é de responsabilidade destes garantir o custeio da plataforma. Note que para concretizar este projeto, especialmente no contexto "privado", a principal via seria com um modelo similar ao Torrent, onde mesmo que o Sarau seja um repositório acessível de forma centralizada, a disponibilidade real da informação é distribuída de forma a buscar minimizar o tempo médio de acesso às músicas. De forma simplificada é como pensar que músicas escandinavas não ficaram armazenadas em computadores no Brasil, mas isso não significa que alguém em qualquer lugar do mundo não possa acessá-la, apenas que o tempo de acesso será alto visto que não é um acesso típico na localidade, enquanto que músicas comumente ouvidas na região terão cópias disponíveis localmente e portanto de mais rápido acesso. O mesmo se aplica à qualidade do áudio, que estará disponível em regiões que tipicamente consumem áudios na dada qualidade.

Note que neste breve esboço não existe uma menção à propriedade intelectual, aos direitos de autoria e as formas de lucro disponíveis. Com relação aos dois primeiros, muito se deriva do fato de que para o consumidor da música, nada disso importa e é simplesmente um obstáculo para o usufruto da mesma. A irrelevância se torna ainda mais forte quando consideramos as novas ferramentas que usam modelos de assinaturas ao contrário da compra direta de cópias da música ou do direito sobre estas cópias. Na hora de escolher entre Spotify, Amazon Music ou Youtube Music, o consumidor está comparando o acesso ao acervo de cópias legais que estas companhias estão autorizadas a reproduzir, assim como funcionalidades adicionais de procura, qualidade musical do acervo e canais de acesso. Em minha visão existe uma contradição na forma como propriedade intelectual e direitos autorais são fundamentados, uma música não existe se esta não puder ser executada, assim como uma ideia ou conhecimento que nunca é discutida ou realizada é inexistente. Desta forma não se pode legislar sobre o conceito abstrato de música, como composição ou peça criativa, apenas sobre sua forma concreta que é a cópia ou a execução da peça (ao vivo). Me parece distópico imaginar um mundo de completa vigilância onde pessoas não autorizadas não poderiam cantar ou tocar uma música, porém a regulação da cópia inicialmente pareceu factível. A digitalização da música e a Internet tornaram inclusive o conceito de legislar sobre a produção, distribuição e reprodução das cópias algo praticamente impossível, todos os processos se tornaram triviais, qualquer um pode gravar uma música (esqueça qualidade), distribuir essas cópias e ter os meios para reproduzi-las sem que seja possível rastrear ou auditar estas operações. Finalmente, no que se refere aos lucros, este também é um elemento dispensável na concepção da ideia, pois delega tal "financialização" do processo geral (produzir, distribuir e ouvir músicas) para as diferentes partes envolvidas e cria um consórcio sem fins lucrativos para remover os obstáculos legais e parasitários no processo (propriedade intelectual e direitos autorais). Como desenhado, portanto, o lucro seria da gravadora competindo com outras gravadoras no seu campo (produção, sem envolver distribuição e divulgação), seria das distribuidoras na ponta competindo com outras distribuidoras (rádios, aplicativos e serviços musicais e produtos específicos) mas não envolveria nesse momento os artistas.

Para os artistas, o Sarau seria arquitetado em uma estrutura de Tiers (similar as séries A, B, C no Brasileirão) baseado em popularidade (quantificada em parte pelo número de hits de uma música) para remuneração. Em contraste com o esperado, o Sarau paga menos por hit para um artista da série A do que ele paga ao artista das demais séries, isso se deve ao fato de que no consolidado (multiplicando o número de hits pelo valor por hit) estes artistas da série A ganharam mais do que os menores, mas este sistema permite de forma mais fácil alavancar artistas menores. Adicionalmente, o conceito de "direito autoral" é flexibilizado e transformado em um sistema sinérgico onde todos os músicos participantes podem executar qualquer obra da plataforma, com a adição de que o número de hits é dividido entre o artista que executou e o artista que originalmente lançou a obra (o que antes seria o detentor dos direitos autorais). Mesmo este esquema pode se apoiar na estrutura de Tiers e a forma como esta divisão dos hits é feita levará em conta se o músico original é mais popular ou não do que o músico executando a peça. Por exemplo, seu um músico pequeno, atualmente na série C, grava e adiciona ao seu repertório no Sarau uma gravação de uma música do Roberto Carlos ou outro artista de grande relevo da série A, cada vez que esta música é ouvida (e passa a gerar hits) uma parte desses hits (vamos assumir 25% para um artista da série C gravando alguém da série A) vai para o artista original e o restante fica com o artista. Portanto, se no exemplo o artista pequeno gerou 1000 hits, 250 desses irião para o Roberto Carlos, e caso o valor pago pelo hit na série C seja 10 centavos, o artista levaria 75 reais, enquanto que provavelmente o valor pago pelo hit na série A é 1 centavo e o Rei levaria 2 reais e 50 centavos para casa. Artistas portanto moveriam de uma série para outra conforme atingem um certo volume de hits mensais para suas obras, incluindo hits herdados de artistas menores que executaram sua obra.

O último item é a questão da privacidade e dos dados dos usuários da plataforma, o que me remete ao problema apresentado no primeiro parágrafo deste artigo, a falta de integração dos "metadados" referentes aos usuários e a música que ele acessa. Usei o termo "metadados" pois não dizem respeito diretamente à obra musical mas sim a forma como esta é utilizada, alguns são explícitos e conhecidos pelo usuário como playlists e reações (likes e dislikes), outros porém são coletados de forma implícita e nem sempre o usuário está plenamente ciente desta coleta, e estes são de diferentes naturezas e dependem muito do serviço utilizado (Pandora pode estar interessado em saber quanto de cada música é ouvida, quando os usuários param de ouvir e quais músicas foram puladas imediatamente, isto não é informação do interesse de uma Rádio local, ou mesmo não é passível de coleta por esta rádio). A solução proposta pelo Sarau neste caso é que este, mediante ao voto do consórcio formador, estabeleça um conjunto de protocolos para armazenamento e associação dos metadados com o acervo, além de disponibilizar aos usuários a listagem de todos os metadados coletados e armazenados na plataforma, quais serviços realizam tais coletas e também o acesso e governança desses dados (ou seja, a habilidade de apagar e controlar acessos). Cabe ressaltar que mesmo que usuários tenham total controle destes metadados e inclusive o acesso aos mesmos, fica sempre disponível para os serviços o acesso a qualquer informação agregada produzida com estes dados. Por exemplo, mesmo que o metadado "Julio gostou da música X" seja do meu total controle e eu possa recusar o acesso a esta informação para o Spotify, eu não posso controlar o acesso à informação agregada produzida, "Y pessoas gostam da música X". Visto que os metadados também são armazenados na mesma infra-estrutura que o acervo, toda informação autorizada fica disponível para todos os serviços de distribuição, portanto, nenhuma migração se faz necessária, podendo ser feita em caráter complementar quando necessário (o serviço pode ter mais informação por música do que o anterior). 

A ideia é que o acesso seja por protocolos públicos e em diferentes níveis de qualidade, porém, público no sentido de que não discrimina quem acessa, não no sentido de gratuito. Plataformas como Spotify e Pandora seriam os contratantes do acesso desse repositório, eles oferecem planos de pagamento aos seus usuários, inclusive planos gratuitos pagos com propagandas comerciais. Cabe ressaltar que Rádios e outros veículos de distribuição fora da Internet também são possíveis e teriam um contrato com o Sarau para oferecer o conteúdo para sua audiência. Para acessar o conteúdo, estas plataformas usariam suas chaves corporativas, assim como uma identidade válida (pessoa física ou jurídica) representando o usuário.  Como falado no parágrafo anterior, todos os metadados associados com esta transação (música ouvida, percentual da música escutada, gostou ou não) são registrados (incorporado nos agregados) e mantidos privados para que o responsável pela identidade decida quais outras plataformas terão acessos à estes dados. Outras formas de distribuição completamente novas também são possíveis, uma empresa pode oferecer um aparelho de som com incrível qualidade sonora e contratar o Sarau para acesso ao repositório de maior qualidade (qualidade com que foi produzido e principalmente armazenado), enquanto uma outra pode se especializar em soluções customizadas para Restaurantes e bares. 

Escrever sobre o tema é difícil e não sei se foi possível esclarecer a ideia como gostaria, além do que, esta é uma área com muito dinheiro e lobby envolvido o que dificulta mobilizar uma ação de caráter tão democratizador e justo como o que apresentei. Como leituras adicionais para uma futura discussão deixo abaixo alguns links:

Breakthrough artists tap tech to bypass Big Music, find listeners on Twitch, Spotify, YouTube | The Seattle Times

Este primeiro é sobre a questão do cenário musical pós pandemia, visto que esta mudou drasticamente a realidade da forma como artistas distribuem e são remunerados por seu trabalho que antes contava em grande parte com grandes gravadoras e eventos ao vivo.

https://stackoverflow.blog/2020/12/10/the-semantic-future-of-the-web

Artigo interessante sobre Web Semantica, muito aplicável na forma como visualizo o lado do usuário e a coleta de dados, o que coloquei como responsabilidade do Consórcio. Abaixo um trecho especialmente relevante:

For example, take a site like Facebook. It maintains mountains of information about people and businesses, with various relationships between different entities from comments, reactions, and shares. This data is part of the Facebook ecosystem; it effectively “belongs” to them. In a future where data is in our own control, sites like Facebook could just be the visual representation of the existing network, built on a Semantic Web. The data we declare public on our website is what can be viewed, giving us full control over what is shared. This also means that we are not locked-in to a service like Facebook. You are free to move to other “front ends,” as the data is yours and you maintain it.

Tradução livre: Por exemplo, pegue um site como o Facebook. Ele mantém montanhas de informação sobre pessoas e empresas, com várias relações entre as diferentes entidades como comentários, reações e compartilhamentos. Estes dados são parte do ecosistema do Facebook, eles efetivamente "pertencem" à empresa. Em um futuro onde os dados estão sobre nosso próprio controle, sites como Facebook poderiam ser apenas a representação visual da rede (de dados e suas relações) existente, construída em uma Web Semântica. Os dados que nós declaramos públicos em nossos websites são tudo que pode ser visto, garantindo a nós total controle sobre o que é compartilhado. Isto também significa que não estamos presos em um serviço como o Facebook. Você está livre para adotar outras "fachadas", visto que os dados são seus e você é quem os mantém.








Comentários

Chu disse…
Fico imaginando quão rápido vc digita para conseguir compor um texto desse tamanho.
Julio Raffaine disse…
Hahahahaha ... meu curso de datilografia tinha que servir pra alguma coisa. Não sou o dedo mais rápido do velho oeste mas uso até o mindinho e sei onde as teclas ficam melhor do que lembro o aniversário de parente. No mais espero que tenha gostado da ideia.