Um Salve para a turma do Aloja USP São Carlos


Me considero uma metamorfose ambulante, como diz nosso poeta Raul Seixas, a quem com minha atual cabeleira e barba (tá vai, pelo na cara) virei sósia (que orgulho!). Não que eu seja carente de personalidade, de ideologia, ou de valores, mas que pelo contrário, elas são fortíssimas enquanto duram, mas não duram para sempre. Pra ser honesto é raro mudar de valores, pois costumam ser geracionais, e não sei dizer se mudei muito nesse tema, mas no resto consigo ver claras diferenças de como ingressei na Universidade e como saí dela, e das transformações que vivi lá dentro, uma das mais relevantes foi a de viver no Alojamento ou, formalmente, Moradia Estudantil.

Eu não era nenhuma fruta verde quando entrei na faculdade, e quem me conhece sabe um pouco do que falo, inclusive na minha escolha de república na época (glossário aqui, república em São Carlos é só uma casa compartilhada, nada mais). Mas ainda assim, nunca tinha conhecido Mestres e Doutores, e acabei embarcando numa casa cheia deles, era averso à música mais popular brasileira, e mergulhei de cabeça no samba. Grande parte da maturidade veio da interação com meus irmãos de criação, Rodrigo, Natália e Fernanda, filhos da minha madrinha, e da própria, a doce porém dura madrinha Ana, e do meu padrinho Arlindo, o cara com a cara mais brava que conheci. Aprendi a cozinhar, limpar, lavar e passar, e acho que não só aprendi a costurar e tricotar porque nunca tive saco pra tal. Além disso, o que acho mais importante, aprendi a não ser o principal, o centro. Sou filho único e havia sido criado apenas pela minha mãe, e portanto, um certo mimo rolou ali (meus irmãos vão falar que o mimo foi forte, mas eu nego!) e a quebra que foi passar a morar com minha madrinha removeu um bom tanto desse egocentrismo.

Nos primeiros anos, mesmo morando na república e tendo acesso à limpeza, roupa limpa e comida (Graças a querida Dona Lays, que esteja abençoada onde quer que esteja), tive um grande protagonismo e autonomia na condução da minha vida e minha madrinha que o diga, ficou P da vida com o fato de que quase nunca voltava para casa. No primeiro ano até que voltei com uma certa regularidade, um tanto porque não tinha tantos amigos na nova cidade e sentia muita falta dos que tinha deixado pra trás.

Agora, mudança de verdade veio quando minha querida madrinha faleceu, e eu já operando na reserva, procurei a turma do Alojamento para saber se eu tinha o perfil necessário para morar lá. Não entenda por perfil algo estético, mas sim sócio-econômico, a moradia estudantil é parte de um programa da Universidade para apoio aos estudantes com menor renda, garantindo que eles possam se ocupar com seus estudos ao invés de buscar formas de renda para arcar com moradia. Não vá pensando que é luxo não, quando ingressei, a USP São Carlos contava com 4 prédios de moradia (se não errei nas contas), e estes ofereciam diferentes condições e capacidade, mas em quase todos os quartos dormiam mais de um aluno, e quando entrei, graças ao Clark, fiquei em um quarto com outros 4, um deles saiu pouco depois, e ficamos em quatro pessoas em um quarto de tamanho regular (daqueles que se botar uma cama King só fica ela). Lado positivo é contar com limpeza da área comum, e estar dentro do campus, usufruindo assim das benesses do mesmo, como energia, wi-fi e os laboratórios e bibliotecas.

Mas de longe, o melhor do Aloja são as pessoas, e digo isso com convicção, tive óbviamente desentendimentos, afinal era um montão de gente e em ambientes assim divergências são naturais, lembro que as assembléias demoravam horas (maldita democracia) quando algo importante ia ser votado, o que tirando as Ocupações de 2007 (confirma aí produção, foi nesse ano mesmo?), era basicamente a escolha dos quartos. Tinha de tudo que é tipo de gente, do mais quietinho ao mais porra louca, do esforçado ao zé preguiça, de todas as cores do arco-íris e de todo um arco ideológico. Havia alguns imigrantes também, da América Latina e África, temporariamente em algum curso rápido ou de forma mais permanente em uma graduação. Tinha gente com vocação pra política, poeta, músico, produtor de eventos, esportista e enfim ... tudo que é tipo de gente, a materialização do Antropofagismo do Oswald de Andrade. Se bixo sofre no trote, era bom ele ir se preparando para o ritual de ingresso no Aloja, especialmente se ele tava ingressando no Bloco A, mais conhecido como Velho. A cachaça era oferecida mais para desinibir o cabra, pois logo iria começar o futebol dos desnudos, time dos sem cueca contra o dos com cueca na cabeça, gol de cabeça também vale! Banho de lama e tinta para dar cor ao evento, e muito trabalho porque de vida mansa já basta os anos pré-faculdade. Os banheiros no Velho não tinham separação entre duchas, então é um festival de pica, e pra garotadinha recatada que nunca tomou banho em vestiário, o choque já começava ali. Sobrevivendo as primeiras terapias de choque, em algum momento, Kami ou alguém ia estourar uma bomba no corredor, ou o Arara ia mandar um Cid Moreira 24 por 7, começando em Genêsis, ou o Clark ia deixar o Racionais rolando no último volume. E provavelmente tudo isso iria acontecer em época de prova, e sem falar que estando dentro do campus, qualquer balada no Campus é uma balada no quintal da sua casa, você dorme quando a festa acabar, ou arruma um jeito de dormir com o barulho.

Tirando a gozação, acho que sempre houve uma animosidade com relação ao Alojamento e seus moradores por parte daqueles que não faziam parte da comunidade (muitos não moravam mas eram frequentadores constantes, Salve Nobu, Davidson, Cipó, Biro!) e a animosidade é especialmente evidente daqueles cuja orientação ideológica é à direita, pois creio que nos enxergavam como privilegiados (pode isso Arnaldo?) ou talvez, melhor, como usurpadores de suas riquezas. Esta animosidade ficou explícita quando ocorreu a Ocupação do Bloco C como parte da manifestação por ampliação das vagas de moradia estudantil, o que em momento algum foi contemplado quando a USP decidiu criar um conjunto de novos cursos e um novo Campus, provavelmente pensaram que o Brasil estava erradicando a pobreza na mesma velocidade. Não tenho rancor destas pessoas, mas uma melancolia, foi pra mim um reflexo vivo da forma como lidamos com a pobreza e a miséria alheia em nosso cotidiano, sem nunca procurar a empatia com o que o outro pode estar passando mas preferimos racionalizar com base em nossos próprios contextos o que eles estão passando. Quando o candidato Guilherme Boulos, em entrevista ao Glenn Greenwald comenta sobre seu histórico em ocupações, sobre a pesquisa que conduziu com as pessoas envolvidas no movimento, não tive como não pensar no meu próprio envolvimento com uma causa maior do que eu, afinal, eu só tinha um ano a mais de faculdade, poderia muito bem virar as costas e seguir adiante, mas ainda sim decidi que a causa era justa e correta, que aqueles com poder para realizar as mudanças deveriam fazer com que a política universitária refletisse à realidade do país, não que ignorasse a mesma, deixando em desamparo estudantes com real necessidade de apoio. Cheguei a ouvir de professores que o Velho era feio, que os estudantes não deveriam pendurar suas roupas na sacada pois fazia parecer uma favela (alguns diziam presídio), que ele manchava a imagem da Universidade. Isso demonstra a completa falta de compaixão deles, e eles, em tempos normais, mantinham essa opinião para si, mas preferiram vocalizá-la quando confrontados com a inconveniência do bloqueio às salas onde dariam aulas. Deixo aqui também a lembrança de que meu companheiro de turma, Neo, também abraçou a causa, e sentiu na pele o que é dormir em um bloco de sala de aula. Mas de parabéns mesmo está toda a galera que participou, e com os conhecimentos de engenharia adquiridos, transformou um prédio de sala de aulas em um condomínio, foram instalados chuveiros elétricos nos banheiros e levamos um sofá (doação minha da república, valeu Wilson!), uma TV, fogão e geladeira. Ficou top, quase não precisava construir um novo bloco de moradia.

Enfim, escrevo esse post pra deixar um grande abraço para a galera do Alojamento, vocês foram parte de uma fase importante pra caralho da minha vida, e não pensem que faço por menos os momentos que passamos, não vou evitar citar nomes para não esquecer ninguém e porque definitivamente vocês sabem quem tá aqui, mas vocês são foda, e meus dois anos lá foram fundamentais para minha formação, não só acadêmica, mas humana. Foram muitas histórias divertidas, muitos perrengues, muitas doideiras, muito King e algumas tretas, momentos sinistros e tristes, e espero que algum dia eu venha a postar algumas destas (talvez finja que é um conto ou aconteceu com um primo pra passar um pano).

Pra fechar com chave de ouro, fiz o upload de uns áudios que tenho das sessões de gravação com o Sergião, o grande violeiro do Aloja, onde fazíamos um dueto violão e pandeiro. Eita saudade desses fins de tarde com música ao vivo e uma roda de amigos. Peço desculpas ao Sergio se estou divulgando material dele que talvez ele queira deixar privado, mas é que gosto tanto que acho cruel não mostrar pros outros.

- Sérgio e Eu tocando Odeon de Ernesto Nazareth
- Eu e Sérgio tocando uma música que creio ser composição própria do Sergião
- Sérgio em Bicho Papão, música que também suponho ser dele, e que recomendo a todos ouvir, maravilhosa. Sergião, quero a cifra pra aprender e tentar tocar pras minhas crianças!

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