Educação para o Trabalho

O título remete ao slogan do Centro Universitário SENAC enquanto trabalhava lá como professor em meados de 2010. Não acredito na verdade do slogan, nem acredito que deva ser uma meta para a Educação ou sua função social, mas ainda assim entendo o apelo do mesmo. Fui professor por dois anos em estruturas de dados e computação gráfica para turmas de cursos de computação mais técnicos, como bacharelado em sistemas de informação e técnico em desenvolvimento de jogos. Os alunos buscavam principalmente o que o slogan prometia, algo que pudesse ter uma aplicação imediata ou um caráter diferenciador no mercado de trabalho, mesmo minhas disciplinas tendo um caráter mais fundamental e teórico nos cursos, a expectativa era a mesma, que o conhecimento fosse de imediato uso no mercado de trabalho. Eu, que na minha carreira principal era encarregado de um pequeno time na Odebrecht para desenvolvimento de soluções de engenharia e construção, entendia o porquê da expectativa de meus alunos e como isso se alinha com a forma como a maioria das empresas no Brasil contratam profissionais de TI (ou contratavam, saí do país ja fazem seis anos). Vejo as seguintes principais formas como uma contratação pode acontecer, em ordem das que acho mais comuns, Análise curricular e certificações é uma das mais fortes, óbvio que contatos e uma boa apresentação durante uma entrevista reforçam a escolha mas para escolhas rápidas ou em projetos específicos é comum escolher o mais certificado e com experiência comprovada (não só tempo de serviço mas projetos lançados, praticamente um Lattes mas não tão focado em produção acadêmica), diplomas de graduação e pós entram como certificações aqui mas tem peso diferente na escolha visto seu tempo de duração e escopo. O segundo modo é o ciclo de entrevistas, mais comum para funções de desenvolvimento, por vezes associado à uma triagem inicial curricular também mas sem foco em certificações necessariamente (a não ser que muito relevantes para o cargo), este modo foca em avaliar a resposta, ao vivo, do candidato às diferentes questões técnicas apresentadas, observando não só a qualidade da resposta mas também a forma como o candidato chega nela. Por fim tem também os programas formais, como programas de trainee/estágio, que usam de dinâmicas de grupo e outras avaliações (entrevistas também) para filtrar os candidatos até o número desejado de participantes. Acho que a diferença nos dois últimos é muito mais no propósito (o que o candidato vai fazer uma vez que é contratado) e no filtro explícito (onde no segundo caso os candidatos interagem com outros concorrentes).

Isso tudo me lembrou da Universidade, no meu caso Engenharia da Computação na USP São Carlos, mas acho que muito pode ser extrapolado para outros cursos na área. O curso é, em prática, uma extensão do ensino médio, com grade horária estrita e ocupando um período inteiro em aulas presenciais, a grande maioria com quadro negro ou slides. Provas e Trabalhos são as formas de se avaliar os alunos para medir o quanto se domina sobre um assunto, caso a nota seja acima do mínimo o aluno é considerado como "certificado" naquela disciplina. Uma vez que todo um conjunto de disciplinas é alcançado, o aluno recebe o diploma de conclusão. Estas provas e trabalhos são desenhados para serem o mais agnósticos possíveis com relação à tecnologia usada, porém é inevitável que escolhas tenham que ser feitas. Disciplinas como Bancos de Dados e Sistemas Operacionais costumam exigir esta escolha por exemplo. Alguns aspectos do curso naturalmente exigem mais tempo do que outros, portanto existe uma estrutura (um grafo direcionado?) que organiza estes aspectos em um conjunto de disciplinas semestrais, onde por vezes, uma será pré-requisito de outras. Todo esse planejamento do curso  é feito levando-se em consideração o que instituições profissionais como o CREA, IEEE, ABEE, SBC entre outras, caracterizam como sendo fundamentais na formação dos profissionais de suas respectivas áreas. Engenharia da Computação, como foi estruturado na USP São Carlos, é uma amálgama da Engenharia Elétrica com a Ciência da Computação, e ensina portanto competências em ambos os campos. No meu caso, me interessei mais por Computação e como estava empregado em um estágio na área de desenvolvimento, planejei ingressar no programa de Mestrado do ICMC, que na época usava o POSCOMP da SBC como exame para avaliar os candidatos ao programa e posterior alocação de bolsas. Achei uma das provas mais difíceis que já fiz abordando uma boa gama de assuntos na área de computação e matemática, com questões de múltipla escolha (eram 70 ou 80 questões se não me engano).

Mesmo tendo condições de ingressar no programa com bolsa, eu também passei em um programa de trainee em São Paulo, e decidi pelo último, peguei meu diploma e terminei minha relação com a universidade. Rapidamente me deparei com uma realidade bem distinta do que a que havia estudado e me preparado, uma muito mais centrada em ricos portfólios de projetos ou certificações específicas como, no exemplo que acho mais significativo, as da Cisco para profissionais na área de redes, como CCNA (Cisco Certified Network Analyst). Empresas com produtos amplamente utilizados na indústria como Oracle, Microsoft, SAP, Cisco entre outras, tem programas de certificação específicos para seus produtos que em muitas situações são mais relevantes que um diploma universitário para conseguir uma vaga. A obtenção destes certificados é feita mediante a um grupo de empresas focadas em capacitar e aplicar as provas certificadoras, quase sempre não são as próprias empresas que aplicam exames, mas são elas quem definem o escopo e validade das certificações. Estas certificações são bem centradas no produto específico da empresa mas ainda assim, muito do que consiste o exame é de uso geral para a área, conceitos que todo graduado em computação possui sobre redes acabam sendo diretamente utilizados nas provas, eu fiz um simulado do CCNA sem nunca ter operado um aparelho Cisco e consegui responder a várias das perguntas. Obviamente que casos como Oracle e Microsoft teremos muito mais o foco no produto do que nos conceitos, mas ainda assim conceitos de bancos de dados ou programação orientada a objetos e engenharia de software serão muito bem vindos senão imprescindíveis.

Fora da área de seleção, algo que me surpreendeu durante meus anos como profissional de carteira assinada, especialmente como profissional de TI não como professor, foi a falta de uma consciência de classe profissional, diferentemente de outras áreas de atuação que, seja por força de lei (Direito, Medicina e Engenharias tradicionais) ou por histórico de luta trabalhista, sempre foram sindicalizadas ou organizadas por associações profissionais. Não participei de nenhum sindicato e nem contribuí para nenhum, não participei de nenhuma associação profissional da área e nem fui apresentado à nenhuma. Sei que existe a SBC mas, honestamente, não me lembro de ninguém ter mencionado este nome desde ter saído da faculdade. Enquanto professor, fui membro do Sindicato dos Professores apesar de não participar ou contribuir explicitamente (apenas a contribuição por lei), e visto que trabalhava na Odebrecht quando de minha rescisão, fui apoiado pelo Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil, os quais achei de vital importância apesar de não ter me beneficiado pessoalmente deles e apenas contatado-os durante rescisão por ser o procedimento legal. A importância principal que vi estava em como apoiavam trabalhadores vitimizados a lutar em pé de igualdade contra empregadores que eram imensamente mais ricos e poderosos. O segundo papel que achei importante é em acompanhar o cotidiano dos profissionais da área, provendo veículos de comunicação para estes profissionais compartilharem de suas experiências e junto à academia expandir o uso de novas técnicas e tecnologias em seus ambientes de trabalho.

Muito interessante, mas por que estou escrevendo sobre isso? Porque acho que existe uma enorme oportunidade perdida aqui, pelo menos na minha área, uma oportunidade das Universidades expandirem seu papel e criarem um híbrido de centro certificador e associação profissional e sindical. Chamemos, para ilustrar, de Congregação Sindical dos Profissionais de Computação (Cosiproc), cuja função, além de representação sindical junto às categorias, é também mapear as diferentes ocupações profissionais na área e propor um conjunto certificador para estas áreas. Por exemplo, para profissionais contratados na ocupação de Engenheiro de Software haveriam certificações para competências gerenciais e de projeto, assim como certificações para competências técnicas, arquiteturais e de controle de qualidade. O CCNA mencionado anteriormente é seguido pelo CCNP (P de Professional) e depois pelo CCNE (E de Expert) sendo este último específico para uma sub-área como VoIP ou Routing. Este poderia ser oferecido em moldes similares pela Cosiproc, o ARCC (Analista de Rede Certificado Cosiproc), PRCC e ERCC. A Cosiproc também certificaria profissionais em algumas tecnologias específicas, como bancos de dados Oracle, administração de servidores Linux e proficiências em diferentes linguagens de programação. A preferência é por tecnologias livres (open source) mas em certos contextos, os principais competidores no mercado são escolhidos, como no caso de sistemas operacionais e bancos de dados. Nem toda certificação seria passível de obtenção apenas com exames, talvez certificações possam exigir experiência comprovada e até mesmo projetos realizados. A Cosiproc teria diversos eventos para apresentar as experiências profissionais na área assim como as principais tecnologias utilizadas, apresentar feiras para profissionais interessados em carreiras na área e eventos em escolas para difundir as opções de carreira. Por fim, mas não menos importante, temos a luta sindical, onde a Cosiproc oferece representação legal e ações de classe para a categoria, busca criar um espaço de solidariedade entre os profissionais da área quando frentes ao empobrecimento das suas condições de trabalho.

Para as Universidades, minha ideia aqui seria haver uma colaboração maior entre ambos, utilizando o mapa de carreiras e panorama de certificações da Cosiproc para informar o desenho de cursos de graduação e pós, e também os instrumentos de avaliação disponíveis para as diferentes disciplinas exigidas. Por exemplo, disciplinas como Redes de Computadores e Sistemas Operacionais poderiam utilizar da estrutura de certificações como método de avaliação (ou pelo menos como fonte para as perguntas). Dessa forma, os estudantes não só obteriam o diploma ao final do curso mas também estariam obtendo certificações importantes para sua atuação profissional futura e construção de um currículo atrativo. Mesmo que a certificação não seja exigência para o curso, a mesma pode ser obtida pelo aluno em paralelo. Cursos podem ser desenhados também para maximizar as oportunidades de trabalho disponíveis para o aluno em paralelo, especialmente nos últimos anos do mesmo. A Cosiproc pode inclusive desenhar junto às empresas oportunidades de trabalho de meio período que facilitam o estudo concomitante.


Fonte da imagem:

https://jornalggn.com.br/sites/default/files/2019/10/educacao-politica-a-subjetividade-integral-e-uma-consciencia-critica-coletiva-contra-a-ignorancia-por-cesar-calejon-educacao-critica-1280x720.jpg

Comentários

Ades disse…
Gostei bastante do relato (que não conhecia por completo).
Vou fazer um comentário sobre um ponto. Depois, podemos comentar outros.

Acho que há algumas considerações a fazer, principalmente sobre o tipo de formação que de haver em um curso de ensino superior.
O principal ponto é a validade temporal do que é apresentado. As certificações, citadas no texto, abranger um conteúdo que é muito importante em um dado momento, mas que é substituído pelo próximo conteúdo muito rapidamente. Estamos acostumados a ver isso na computação, mas isso acontece em praticamente todas as áreas. Deve, então, haver uma preocupação em ensinar conteúdos e conceitos que são mais "perenes". Nesse quesito, para saber se há vantagem na formação superior é conferir o quão facilmente pode-se obter o nível exigido em uma certificação específica, quando comparada com alguém que não teve essa formação.
Focar em alguma certificação em particular só faria sentido como uma forma de exercitar um conceito mais geral.
Julio Raffaine disse…
Realmente, mas a interpretação da intenção está invertida, a ideia é que provas e trabalhos sejam guiados em parte pelas certificações oferecidas, o que assim como o conteúdo da área vão passar por constantes revisões. Diria até que o conteúdo dos exames certificadores avança mais rápido do que mudanças de escopo em disciplinas na graduação, pois tem que se ajustar mais rapidamente as necessidades de mercado, e como apontado, tem prazo de validade (Diplomas graças a deus são eternos).

Não gostaria de substituir disciplinas por certificações, mas gostaria que as provas que tanto tive que estudar, me preparassem também para estas certificações.