Delírios

Carlos, acho que este era o nome, talvez alguns chamassem de Carlão, mas tinha que ser seu íntimo, ele não gostava de gente viva e falando. Na verdade todos no meio dele eram de seu torpe modo seduzidos pela morte, a forma como a vida, tão frágil e dependente deste ambiente que a sustenta, foge e em uma fração de tudo aquilo que passou se esvai e segue seu caminho. Este caminho era o que mais lhe intrigava, sua origem semi religiosa com batismo e uma ou duas trocas de igreja haviam lhe oferecido poucas e tediosas explicações sobre vida e morte, qual o nosso papel, como transitamos na roda do tempo e destino.

Mas ele não estava sozinho, de uns anos para cá, suas noites estão assombradas, mas não pelos fracos que ele derrubou, que a muito não lhe incomodam, mas sim por um único e insistente fantasma, um cuja face nunca lhe é clara, cuja presença o perturba e ao mesmo tempo o cativa em sua jornada de descoberta. Este voyeur se apropria do prazer de guiar a vida por seu caminho, de ser um comandante do destino, mas não age, observa e em seu modo intrigante o desafia e compele a matar. Isso, matar, Carlos com sua humilde família e precária estrutura matou a primeira vez que já não se lembra, prefere fantasiar que foi algo importante, que pode dirigir o destino e usar isto a seu favor. Não era um acadêmico, mas a curiosidade lhe movia, era habilidoso e matava com precisão, preferia sentir o momento, como se aquilo o fortalecesse, garantisse seu lugar no ciclo.

Acho que ele tinha vinte cinco anos quando aconteceu, ganancioso com a oportunidade de matar e enriquecer, antecipou-se em sua investida e um golpe na cabeça o liquidou, poderia tê-o matado, se é que não foi isso que ocorreu. Ainda estava zonzo e esta sensação o ajudou a suportar o ambiente confuso, onírico quase efêmero, estava morto, essa era a única explicação. Todo o lugar estava vazio, mas parecia estranhamente cheio, como se as pessoas não estivessem presentes, mas sim suas emoções, como se a fala delas ainda permeasse o ambiente, mas sem um som.

- Neste momento você deve estar sendo preparado para a cremação, muita infelicidade sua estar junto a seus inimigos neste momento. - E a voz vem daquele que a anos vem o seguindo, a testemunha eterna de suas ações.
- Insinua que estou morto?
- Não, pois se estivesse morto não teríamos esta conversa, mas você não está em seu corpo, está livre, pronto para seguir adiante, como todos eles.
- Você estava lá, ainda não vejo seu rosto, mas sei que estava lá.
- Novamente está errado, eu não existo e portanto não poderia estar lá, estou e sempre estive aqui. Tem que escolher qual será seu caminho, tem que entender seu papel e o movimento da roda do destino.
- Não farei o que um estranho desconhecido me diz, e afinal de contas, por que se preocupa?
- Sou mais parte de você do que esta patética apresentação que está em minha frente, já estivemos em guerras e alcançamos a grandeza, me preocupo porque não pode permanecer adormecido, és parte de uma epopéia.
- Isto é tão real, ao mesmo tempo que parece um sonho, eu estou vivendo isso, onde estou?
- O mundo é maior do que imagina, e está começando a descobrir uma parte dele até então oculta.

E então, novamente sozinho, Carlos se deita no chão e passa a olhar o que está ao seu redor, e percebe que ao olhar o lugar se transforma e começa a formar uma nova paisagem, o escuro e sombrio galpão que estava aos poucos permite a passagem da luz das estrelas e então  som das folhas de árvores e arbustos faz com que ele perceba que está no campo, afastado, mas ainda sozinho. A sensação é nova, o estranho clima de ansiedade e terror que sentia até então se foram, resta apenas a luz das estrelas e a serenidade no som das folhas ao vento.

A conversa com aquele estranho ser perturbava Carlos, ele agora parecia tão parte de Carlos como ele mesmo, seria este o significado da vida e da morte, esta estranha transição. O que seriam estes adormecidos, o que ele não conseguia ver por detrás deste estranho encontro. E, afinal de contas, que estranho lugar era este, como saiu do galpão e veio parar aqui nesta floresta tão rapidamente. A floresta não parecia comum, mais do que isto, todo o lugar parecia fora do comum, as cores eram mais vívidas e havia uma estranha luz no ambiente, as estrelas brilhavam com intensidade ali. Mas não havia vida, nem mesmo a floresta parecia-lhe viva, tinha sua própria essência, mas não era a vida que conhecia.

Sombras, muitas sombras começaram a preencher o ambiente, mas não vinham acompanhadas do corpo que as projetava, caminhavam livres e zombavam do intruso, circulando-o e observando-o olhar perplexo aquele movimento. Mas acima de tudo parecia que tentavam agir sobre ele, e ele não os sentia, não entendia o que tentavam fazer. Porém aos poucos seu corpo começa a pesar, ele desmorona, seu corpo arde em chamas, seus olhos recusam-se a permanecer abertos.

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