Parte tão presente da nossa vida, o dinheiro é como o ar que respiramos, simples em aparência mas bem mais complexo do que aparenta. O que apresento neste post não é uma análise de fatos históricos, mas reflexões e racionalizações diversas baseadas em leituras sobre o tema. Talvez coloque algumas citações para menções diretas, mas ressalto que isso é mais reflexão sobre uma possível história do que necessariamente a História.
Começando do princípio, provavelmente a maioria concorda que as primeiras formas de interações econômicas se davam mediante à escambo, ou seja, troca direta de mercadorias. Sendo as primeiras civilizações tão remotas e de difícil acesso à fatos históricos é difícil concluir que realmente houve uma economia em larga escala (para população da época) baseada em escambo, mas provavelmente a primeira forma de comércio se deu por trocas de mercadorias diretamente, sem uma atribuição explícita de valor, ainda mais se pensarmos que estes primeiros mercadores estavam trocando por algo que não tinham acesso ou nem conheciam.
Porém, imagino que uma vez que grupos humanos agrários estabeleciam contato com outros, e o contato era amistoso, o escambo seria apenas uma iniciação do comércio, mas logo se mostraria ineficiente e complicado de manejar. É dessa complexidade emergente do comércio que a valorização explícita das mercadorias se estabeleceu e provavelmente um elemento comum a ambos os grupos seria usado como o mecanismo de valorização e troca, o dinheiro. Vários autores apontam para as primeiras formas de dinheiro como sendo o dinheiro commodity, ou seja, um dinheiro que é também um item consumível seja para produção como para uso direto, por exemplo, maçãs poderiam ser usadas como dinheiro. Provavelmente estas primeiras formas de dinheiro eram algo que não apodreceria tão rápido como maçãs e que também não fosse tão volumoso e difícil de transportar.
No aspecto doméstico, uma vez que humanos passaram a ser agrários e se organizar em grandes grupos, é pouco provável que as relações econômicas entre eles se davam por meio de escambo. É importante entender que é um sistema muito complicado pra ser usado na condução de um grupo e que a transição de grupos pequenos para grandes não foi um processo imediato, mas sim algo que foi ocorrendo ao longo de vários anos. Dessa forma, penso ser mais provável que grupos pequenos eram completamente livres de organizações econômicas, sendo uma cultura de trocas e propriedade comum (como uma tribo pequena de indígenas), e seu crescimento só foi possível por meio da implantação de uma forma de Estado, com impostos e técnicas contábeis, contabilidade essa que senão iniciada ao mesmo tempo que o dinheiro, pouca relação tinha com o mesmo, era mais uma organização de estoques e parte da "hierarquização" (não sei se a palavra existe) do grupo, do que necessariamente um sistema de contas correntes e trocas diretas entre membros do grupo.
Independente da ordem dos fatores, em algum momento a contabilidade doméstica e o dinheiro se encontraram, e o dinheiro passou a integrar parte da vida doméstica, dando origem às economias, e como o dinheiro permite a descentralização das interações econômicas, ele potencialmente acelerou o crescimento desses grupos dando origem às grandes sociedades. O dinheiro possivelmente passou por várias formas até se firmar em metais como prata, ouro e outras ligas.
A próxima grande transformação vem na concepção dos Bancos, que provavelmente eram parte do governo e inicialmente apenas como mantenedores dos depósitos, é provável que deles surgiram os primeiros sistemas de notas promissoras e do dinheiro representativo, ou seja, aquele que não tem outro uso senão ser dinheiro (não que ouro tivesse muito uso à época senão estético). Uma vez que os Bancos começam a formar as reservas (e provavelmente cobrar pra manter o dinheiro), vem o conceito da reserva fracionária, onde o Banco não possui liquidez de todo seu ativo, ou em outras palavras, ele não tem todo o dinheiro que diz ter. Na reserva fracionária, o Banco vai manter em seus cofres uma fração do total depositado, por exemplo metade, e o restante fica disponível para o Banco utilizar para empréstimos (convenhamos que não seria inteligente se ele gastasse o dinheiro sem expectativa de retorno). Em sistemas de reserva fracionária, existe um risco implícito que em inglês é chamado bank run, onde os clientes do banco tentam resgatar todos os seus depósitos, levando inicialmente ao esgotamento da reserva e posterior completa perda de liquidez do Banco que não terá como pagar o restante dos depósitos.
A noção de um Banco Central já devia existir desde antes da noção de dinheiro representativo ganhar força, pois é provável que governos exerciam o papel de Banco. A figura moderna do Banco Central porém só veio a ganhar corpo no século XVII, e este independente do comando ser estatal ou privado, tem forte interação com o Estado, que é a principal entidade para provisão de liquidez, por meio de títulos da dívida, para o Banco, e além disso tem papel central na execução das políticas monetárias do Estado, sendo o dententor das reservas de todos os demais Bancos e também a primeira linha de proteção contra perda de liquidez dos Bancos, promovendo empréstimos direto, mas principalmente por meio de políticas que controlam juros e o percentual de reserva necessário.
Pronto, nossa civilização fictícia chegou em situação similar à nossa, onde existe um Banco Central e um conjunto de outros Bancos operando por meio de um sistema de reserva fracionária e usando dinheiro representativo. Além de um Banco para outros Bancos, o Banco Central também exerce o papel de autoridade monetária em uma nação, papel esse que se dá geralmente de forma indireta, por meio de controle da fração de reserva obrigatória, definição da taxa de juros base, coordenação junto ao Tesouro Nacional do volume de dinheiro circulante, e manutenção das reservas da Nação. Aqui entra um ponto que acho interessante, como o dinheiro representativo não tem valor por si, diferente das commodities, como esse valor é definido? Para commodities, se olharmos o histórico, conseguimos ver que a relação entre a demanda e a oferta estabelece o valor, ou preço, da commodity. Quando a commodity é usada como dinheiro, porém, não é o preço desta que é relevante, mas o preço como obtido pela relação entre oferta e demanda nos itens. Existe um desbalanceamento ao meu ver, pois a simples descoberta de mais commodity habilita alguém a ignorar o preço da commodity e usar ela diretamente como dinheiro. O dinheiro representativo é em geral emitido por uma autoridade, seja ela um Banco que emite notas de depósito, que acabam sendo usadas para trocas diretas entre pessoas, sem exigir resgate do depósito no banco, ou emitido por um Governo. Este dinheiro, controlado por uma autoridade, mitiga a criação espontânea de mais dinheiro em uma economia, como era o caso da commodity. Aqui que entra um conceito de Inflação Monetária, pois somado ao efeito natural da oferta e da demanda, existe uma nova variável, o volume de dinheiro em uma economia. Quando mais dinheiro é produzido, sem que haja uma correspondência material pra esta criação, como coleta e produção de itens e trabalho, o efeito é uma diluição do poder de compra do dinheiro, efeito este que é rebatido com aumento dos preços. Logo, cabe ao Banco Central em conjunto com o Tesouro controlar o efeito monetário nos preços dos itens de consumo. Uma outra parte da equação, que honestamente sei pouco como resumir, é o Câmbio. Simplificadamente, em um cenário com múltiplas Nações, e com estas, múltiplas variedades de dinheiro representativo, o que chamamos de Moedas, temos que as relações comerciais entre estas Nações deve definir qual Moeda será usada para a transação, esta decisão tem um enorme peso, uma, porque exigirá a definição de relação de preço entre as duas Moedas, e pois sabemos que o volume de dinheiro é flexível, e portanto seu preço, ou capacidade de compra, é variável. Não sou especialista, o que acho que deu pra ficar claro pra quem chegou até aqui e está me amaldiçoando, mas a Balança Comercial de uma Nação, a relação entre exportações e importações, vai afetar indiretamente o volume de reservas em outras Moedas, e também o volume de dinheiro circulante na Moeda da Nação, afetando assim o poder de compra da Moeda domesticamente.
Finalmente, Crypto! No início do ano de 2009, um artigo autorado por Satoshi Nakamoto, que até hoje ninguém sabe dizer quem era essa pessoa, ou até mesmo quem foram, pois pode ser um grupo que criou uma identidade fictícia, deu uma balançada na zona de conforto da sociedade, trazendo o dinheiro para a era da Internet. Satoshi introduz nesse artigo um protocolo distribuído, denominado Bitcoin, pelo qual transações podem ser realizadas entre dois participantes, garantindo que não haja um gasto duplicado do mesmo dinheiro (double spending), e também que exista o dinheiro sendo transacionado. Isso é mais técnico do que é algo que paramos pra pensar quando o assunto é dinheiro físico, pois a própria física impede que eu use a mesma nota ou moeda em duas transações distintas simultaneamente, além do que, quando eu dou a nota pra alguém, pronto, transação realizada e se eu não tinha uma nota pra dar, eu não consigo criar uma a partir do nada. Porém, quando pensamos no dinheiro digital (o do parágrafo anterior) essa realidade já é mais perceptível, as bandeiras para transações por cartão, como a Visa, devem garantir que não haja uma duplicidade de transação, semelhante ao problema do gasto duplicado, e também que os fundos sejam efetivamente transferidos, validando-se a existência de tais fundos. O Bitcoin é uma Moeda completamente digital, e é basicamente um conjunto de contas correntes, chamadas carteiras, transferindo fundos entre si. Repare que não existe a materialidade do dinheiro, apenas o seu volume em carteiras, não existe um paralelo entre uma nota de 1 real no mundo do Bitcoin, porque lidamos apenas com fundos e transferências destes. No Bitcoin não existe um orgão central que valide as transações, estas são validadas por qualquer um dos nós participantes do protocolo, porém, a efetização das transações se dá quando estas são incorporadas em um Livro Contábil Global, a Blockchain, mantido por, e publicamente disponível para todos os participantes. Transações são organizadas em blocos, que por sua vez terão um bloco sucessor, formando assim uma cadeia de blocos, daí o nome. A formação de um bloco é controlada por meio de um sistema chamado Prova de Trabalho (Proof of Work), que simplificadamente, é uma charada criptográfica, que não possui heurística para sua solução, ela será resolvida na sorte, como uma loteria, e tem mais chances aqueles que tentam mais vezes encontrar a solução. O objetivo da Prova de Trabalho no protocolo é garantir que seja difícil conceber um bloco, e portanto, será difícil falsificar uma cadeia de blocos, garantindo ao protocolo proteção contra o problema de gasto duplicado. Como premiação pela geração do bloco, o nó da rede (o computador que encontrou a solução) responsável receberá um volume X de dinheiro, dinheiro este que é criado neste momento. Este é o único modo de criar dinheiro no protocolo, fazendo com que a oferta de dinheiro seja impossível de controlar, mas sim ocorra naturalmente e dada a natureza aleatória da charada, seja imparcial sobre quem receberá esse novo dinheiro. Por meio da diminuição gradativa desse prêmio, estabelecida no protocolo, surge naturalmente um teto para quanto dinheiro pode ser criado no protocolo. Isso faz com que o Bitcoin seja bem pouco sucetível à inflação de origem monetária, e tenha uma natureza distinta do dinheiro representativo utilizado até então, pois carece de uma autoridade que lhe dê credibilidade, obtendo isso por meio do consenso dos nós participantes da rede e nas premissas do protocolo. O Bitcoin foi só o começo, hoje contamos com mais de mil Moedas puramente digitais, popularmente conhecidas como Cryptocurrencies, devido ao fato de que utilizam pesadamente de criptografia em seus protocolos (a própria prova de trabalho do Bitcoin é uma charada criptográfica), e mesmo que a Moeda não use de Prova de Trabalho ou mesmo de criptografia em seu protocolo, sendo puramente digital, ela costuma ser enquadrada como Crypto também, mas eu particularmente prefiro reservar este título àquelas que são descentralizadas em sua operação (senão Visa e Mastercard poderiam ser chamadas de Crypto).
Chega ... cansei, falei mais do que pensei que fosse, e nem deu espaço pras minhas ideias doidas sobre dinheiro, que irei reservar para uma segunda postagem no tópico.
ATUALIZAÇÃO 11/09/2018: Droga, escrevi um monte e esqueci de trazer de volta o tópico Impostos, que se apresenta como uma forma de remover dinheiro de um sistema econômico. Lógico que alguém pode fazer uma pilha e tacar fogo no dinheiro, mas 1) isso iria queimar a fortuna de alguém específico, o que não parece do interesse desse alguém e 2) grande parte do dinheiro nem existe na forma de papel. Os Impostos não só servem para que uma Nação mantenha um Governo, mas também para que este invista na ampliação da riqueza desta Nação. A regulação da dívida de uma Nação e os Impostos são formas também de se remover dinheiro do sistema, causando o efeito contrário ao da Inflação, o ganho de poder de compra, a Deflação. Uma outra forma interessante é a prática de Juros Negativos na emissão de Títulos do Tesouro (ou seja, a dívida pública), juros negativos significa basicamente pagar para alguém pegar dinheiro emprestado, no caso, o Banco receberia menos do que emprestou ao Governo. Enfim, provavelmente não foi a toa que esqueci de mencionar Impostos e Deflação, foi porque entendo super pouco dessa lógica e não é um fenômeno que vemos corriqueiramente, em geral, quando as coisas não estão bem e a riqueza não segue o volume de dinheiro disponível, temos logo um colapso e uma espiral de quebras e falências, onde a ecnomia entra em uma recessão.
Fonte das Imagens começando do topo:
[1] http://www.viennashares.org/wp-content/uploads/2015/09/Paper-currency-07-1280x720.jpg
[2] https://www.ancient-egypt-online.com/images/barter.jpg
[3] https://www.intelligencesquaredus.org/sites/default/files/debates/113-central-banks-debate.jpg
[4] http://scitechconnect.elsevier.com/wp-content/uploads/2015/03/Digital-Money.jpg
[5] https://thehedgecoingroup.com/wp-content/uploads/Collection-of-cryptocurrencies-with-Bitcoin-in-Gold-Bootstrap-Buddha.jpg
Comentários
Na criação das primeiras formas de dinheiro commodity, que provavelmente sucedeu vários conflitos onde não havia troca mas total conquista, eu imagino que a Autoridade do dinheiro pode ter apresentado várias formas, mas em comércio de duas nações, acho pouco provável que um líder de um dos grupos pudesse estabelecer tal autoridade, acredito que era mais um senso comum de estética e utilidade, como no caso de Grãos ou Metais, que proveria esta autoridade, e portanto proveria Valor ao dinheiro.
No caso do dinheiro representativo, como até no seu exemplo, uma moeda com a cara do rei, esta Autoridade quase sempre se estabelece em governos, na figura do Rei não como pessoa mas como ideia, até o Dólar hoje tem sua autoridade obtida pelo Governo dos EUA e toda a força que vem com isso. A questão das guerras como você menciona foram cruciais, pois até como levanto no texto, o mais importante na manutenção da economia de reserva fracionária é a circulação, é o crédito. Eu menciono títulos da dívida talvez, mas em tempos passados isso era muito mais percebido na forma como você coloca, promessas de recompensas futuras por parte da autoridade (no caso o Rei), estabelecendo assim uma forma de Crédito de alto risco (vai que ele perde a guerra ou que os espólios não repagam o investimento).
Em sistemas que antecedem a noção de reserva fracionária, crédito era bem mais escasso, e provavelmente guerras falidas estiveram por trás de queda de grandes civilizações.